Surgia o senhor da noite com a
sua casaca velha, mofada e cheia de buracos que escapavam a luz ancestral de
estrelas mortas.
Contemplava o céu Gregor Samsa.
Já fazia um mês que a sua imagem contemplava a mesma condição dos seres de
casco e patinhas finas. Vivia ignorado num quartinho, o qual sua irmã limpava
diariamente. Dialogava sua tristeza com as estralas. Triste por ter sido visto
por sua irmã, que chegara ao quartinho e observara a figura...
Durante aquela noite ouviu
passos firmes... Seu pai? Será? Olhava par ao quartinho escuro e sentia medo.
Um vulto ia surgindo.
- Já morri a algum
tempo. Existe um espírito maior de todos chamado tempo, o qual permite que os
filósofos caminhem por uma infinita seara da metafísica. No tempo e no espaço.
Mas eu a chamo de liberdade, assim como chamei a vida de: vontade.
Gregor não compreendia
metafísica, mas, de alguma forma, compreendia a fala do homem.
- Chamo-me Schopenhauer,
e você, jovem Samsa... É, para mim, a representação mais curiosa da vontade.
Permite-me estudá-lo. Não como um naturalista, mas como... Como eu mesmo.
O medo percorria o corpo de Gregor, suas patinhas mexiam-se
sem sua vontade, ele andava por todos os lados. Aquele homem descabelado, um espírito?
Mas o que é mesmo um espírito para Gregor. Como animal ainda teria um? Perdia
aos poucos a noção das coisas. O quarto girava e aquele homem o contemplava com
curiosidade, na verdade tinha feições rígidas e muitas rugas, parecia que vivia
zangado.
- Quando escrevi O mundo com vontade e representação não
deixei de acrescentar a vontade como algo intrinsecamente ruim, ou seja, a
vontade é causadora de todas as dores, por isso considero a vida um sofrimento,
viver é sofrer... Gregor! O seu mundo
fenomênico tornou-se algo curiosos para minha teoria, sua idiossincrasias o
tornaram este ente... Este ser! Magnífico.
Afinal, o que dizia esse homem
descabelado, seu sorriso o tornava, curiosamente, mais emburrado.
- Sempre declarei,
que Kant me desculpe... Ah! Como se eu fosse sujeito de pedir desculpas! A
razão pura é impotente quando encontramos criaturas como essas...
O jovem Samsa pensava triste no
que havia ocorrido pela manhã, ainda pensava em seu aspecto grotesco.
- Preciso ir agora,
mas voltarei. Em todo caso, use o lençol da cama para se esconder quando ela
vier.
O homem descabelado sumiu assim
com apareceu. Os passos firmes agora se distanciavam.
Seguindo o conselho do filósofo,
Samsa levou quatro horas para se esconder no lençol para não assustar Grete.
Sua irmã pareceu gostar da nova
atitude, Gregor dominava melhor o corpo e se divertia andando pelas paredes que
ficavam cheias de rastros.
Certo dia sua mãe e irmã mudaram
os móveis de luar, com isso, a visão de sua antiaga vida distanciava-se cada vez
mais. Nesse dia sua mãe desmaiou após vê-lo. Seu pai o espancou e jogou uma
maçã que ficou cravada em suas costas.
Somente naquele dia Schopenhauer voltou ao aposento dele:
- VONTADE DE VIDA!
Como
assim vontade de vida? Estava com uma dor insuportável e queriam eliminá-lo já
que se tornou um fardo.
Os
meses se passaram, toda a sua família cuidava do sustento da casa que antes era
tarefa de Gregor com sua profissão de caixeiro. A casa tinha inquilinos que
complementavam o orçamento. Uma faxineira velha e viúva cuidava da limpeza do
quarto de Samsa. Onde estava sua irmã?
Certo noite Gregor por horas ouviu Schopenhauer:
- A felicidade reside ou no futuro ou no
passado, o presente é como uma nuvem negra tampando o sol.
Onde
estaria a felicidade de Gregor? No
passado? No futuro? Que futuro teria o animal que deixa rastros pela parede?
- A desilusão desperta a convicção que nada
em nosso laborar é digno de valor, que todos
os bens são nulos, que o mundo em
todas as partes entra em bancarrota e a vida é um negócio que cobre os seus
custos – de modo que nossa vontade pode operar uma viragem. Diga-me, jovem,
será que você era?
Era?
Feliz? Era feliz? Era miragem... Era amado? Era amado quando era. Quando não
era inseto.
- O puro sujeito do conhecimento é destituído
de vontade. O suicídio é a forma de destituição arbitrária de um fenômeno
individual, você se suicidou a medida que destituiu-se do seu fenômeno
individual e o tornou coletivo... Sabe, até os próximos séculos muitos
interpretam mal minha posição em relação ao suicídio. O mesmo é, na verdade, o
fenômeno coletivo de vontade dessa sociedade. E o indivíduo? Onde está?
Tornou-se nulo, logo está morto. Mas você, apenas não se tornou o “puro sujeito”,
tornou-se esta admirável criatura.
Gregor
se sentia bem ouvindo o filósofo. Era o único que ainda lhe dava atenção.
- Que é isto? Ouço um violino...
Era a irmã de Gregor que tocava tão bem...
- Adoro música – a maior expressão de vontade
– completou – Sentimo-nos vingados pelo
mundo heroico! – Você precisa escutar As
Valquírias, meu caro!!
Os
olhos do filósofo vibraram numa contemplação ascética. Gregor teria mandado a Irmã para o
conservatório se não fosse... Não. Se ele ainda fosse.
Foi
em direção à música. À quintessência da
melodia. Suas patas faziam barulho.
Um dos homens viu a criatura e apontou na
direção dele.
O violino parou.
O pai de Gregor tentou escondê-lo.
Houve agitação.
Gregor foi para seu quarto...
Seu pai estava furioso...
Gregor estava muito cansado.
·
Gregor
abriu os olhos. Era de manhã. Schopenhauer sorriu do seu jeito.
- Levante-se, meu caro!
Vários
homens se aproximaram de Gregor e o cumprimentaram. Tinham roupas e aparências
muito diferentes. Estavam numa seara dourada de trigo.
- Meu jovem, este é mundo numênico.
C.S.A. Linhares (direitos reservados)