domingo, 2 de junho de 2013




A VOLTA À LITERATURA INFANTOJUVENIL EM QUARENTA E CINCO DIAS:
COM CECÍLIA E LOBATO¹

            Tudo começa com o encerramento da última aula da professora de Crítica Literária, Nilma Lacerda, a qual solicita um trabalho em que, nós alunos, deveríamos estabelecer uma conversa entre Monteiro Lobato e Cecília Meireles. Teríamos quarenta e cinco dias após o término das aulas para escrever um bom trabalho. Preocupou-me o fato: como eu, uma pessoa tão simples, poderia fazer Cecília e Lobato conversarem e, pior, estabelecer essa conversa por escrito e descrevê-la?
            Outro agravante fora o tempo... O tempo sempre é um agravante. Este me devorou parte dos dias temperando-os com fel, mas para essa entidade devia de estar muito bom aquele banquete. Com efeito, acho que consegui a tempo, construir uma máquina para trazer os dois grandes da Literatura Infantil conversassem comigo. A máquina assemelhava-se a um balão. Isso mesmo, um baita de um balão. Assim, levei meus textos comigo e eles se transfiguraram em um homem imponente de terno e sobrancelha relevante e uma bela senhora de face delicada e olhos profundos que sorria manso. A princípio, ambos não entenderam como foram colocados ao mesmo tempo no mesmo tempo e, ainda por cima, num balão; lá nas alturas do céu. Acho que nós três estávamos com medo dessa altura, mas o balão não era daqueles que voa baixo, ele precisava subir para manter os literatos comigo e eu sabia que tínhamos poucos dias.
Contei à Cecília que eu era aluna de um curso de Especialização em Literatura Infantil e a bondosa escritora iluminou-se em saber do grande avanço no estudo: Pensar que naquela época eram tão poucos os estudiosos. Pensar que uma Biblioteca que levava meu próprio nome proibira a leitura de muitos livros, como os de Mark Twain, por exemplo.
Também fascinado, Monteiro Lobato, praticamente o precursor de uma Literatura genuinamente brasileira e infantil, avermelhou-se em ver a grandiosidade de um projeto que fora sonhado por tão poucos e levou tempos para chegar tão longe. Disse-lhes que tal projeto precisava de mais sonhadores, disse-lhes que ainda existem as mesmas dificuldades de outrora - as mesmas.
            Pensando nessas dificuldades, Cecília ressaltou essa associação entre Literatura e Letras. A autora também indicou como a Literatura precede o alfabeto (MEIRELES, p.2), ou seja, que povos primitivos também possuíam uma chamada Literatura oral que nos remeteria aos mitos, às lendas etc., que transmitidas de geração em geração perpetuam-se e, muitas vezes, passam do domínio oral para o escrito. Alguns, na época, indagavam essas afirmações, da mesma forma, que alguns, ainda hoje, indagariam se existiria ou não uma Literatura Infantil.
            Com isso, a autora concluiu: Costuma-se classificar como Literatura Infantil o que se escreve para as crianças. Seria mais acertado, talvez, assim classificar o que eles leem com utilidade e prazer. Não haveria, pois, uma Literatura Infantil a priori, mas a posteriori. (MEIRELES, p. 2).
            - Estamos cá nós, discutindo literatura? – disse Monteiro Lobato erguendo os braços como um maestro.
            - Espero que sim – disse eu – Pois se trata de um trabalho de Crítica Literária em Literatura Infantojuvenil.
            - Fascinante!  - Afirmou Cecília em tom menos contido que o anterior. – Como eu afirmara em meu texto Problemas de Literatura Infantojuvenil, uma sutil questão de estilo poderia caracterizar a chamada literatura para crianças e jovens. Para muitos seriam livros simples, fáceis, ao alcance da criança... (MEIRELES, p. 3).
            - Sim, Cecília! Quando você afirma ao alcance refere-se ao que a criança pode alcançar intelectualmente, também? Pois nunca duvidei que uma criança não pudesse alçar voos mais altos. Creio que você também não.
            - Exatamente, Lobato, ou seja, essa questão do estilo corresponde ao conteúdo.
            - Recordo-me o texto, tal conteúdo condiz com o que o adulto julga interessante para a criança. Sendo, assim, uma invenção e intenção do adulto. – Afirmei num ar de boa aluna.
            - Assim, nessas condições, qualquer tema, de suficiente elevação moral, exposto de forma singela pode-se transformar-se em um livro infantil. (MEIRELES, p.3) E é a grande maioria. Camila, diga-me como é hoje?
            - Não mudou muito...
            - Não pode ser? – Disseram uníssono.
            - Verdade, o mercado ainda cria livros com essa espécie de fórmula e até os próprios pais, que na realidade são o verdadeiro público, julgam o que é interessante para criança e, por sua vez, o interessante é o “politicamente correto”.
            Agora, falando dos educadores, eles próprios trazem a literatura para as salas de aula, mas a transformam num coadjuvante pedagógico, distanciando a literatura do processo estético que caracteriza a perplexidade do ser humano, e isso inclui a criança, perante a vida, a morte etc.
            - Que interessante!  Você já leu “A chave do Tamanho”? – indagou Lobato.
            - Sim, lemos em classe e nossa professora Nilma Lacerda, que também escreveu um texto interessantíssimo sobre a presença do mal em sua obra.
            - Que fascinante, conte-nos mais.
            - Não posso, pois não dá tempo. Faltam poucos dias para entregar essa conversa a ela. Quando estiverem com ela vocês podem perguntar tudo o que quiserem diretamente.  Mas essa questão do mal, de certa forma, tem a ver com o que Cecília fala que deveríamos saber o que há de criança no adulto, para poder comunicar-se a infância, e o que há de adulto, na criança, pra poder aceitar o que os adultos lhe oferecem. (MEIRELES, p.3).
            - Posso falar-lhes – disse Lobato – Isso me lembra um episódio que vivi com um pingüim e registrei numa carta ao meu amigo Rangel, datada em 15 de setembro de 1915. Bom, Nas pedras de S. Vicente peguei um pingüim, de asinha machucada. E por causa desse coitadinho tive de brigar no bonde... Havia um condutor português que afirmava O regulamento purive conduzir aves nos bondes. Eu quis discutir calmamente Ave tem penas, meu senhor, e onde estão as penas deste vivente? Aleguei. Ele teimou que era ave... (LOBATO, p. 287)
            - Emília? É a própria Emília: Ave tem penas, meu senhor... Isso é o que há de criança no senhor, Lobato?
            Este, por sua vez, calou-se olhando fixamente para mim e continuou, enquanto Cecília ria-se da historia insólita de pingüins e bondes.
            - Bom, continuei o bate boca após o português ter parado o bonde. Creio que aquele tenha sido o único pinguim a andar de bonde.
            - Li algumas dessas cartas ao Godofredo Rangel. Há uma densa profundidade de crítica literária nesses textos. Como, por exemplo, o senhor pede ao seu interlocutor para podar as “camilices”, chamando alguns vocábulos de fósseis! Disserta, enfim, sobre a escolha de palavras... Será por causa daquele português que parou o bonde no tempo e não permitira a presença de um pingüim quebrando as regra? – Disse em tom exageradamente empolgado.
            - Deixe você de camilices,  Camila – afirmou Lobato. – Vamos ouvir Cecília que só está rindo dessa conversa, “literária”.
            - Ah! Lobato. Bem que há um ponto que não discordamos em Literatura Infantojuvenil, a permanência do tradicional... Enfim, desse manancial profundo do qual bebem todos os povos. Que nos permite uma identidade de formação (MEIRELES, p. 5). É essa literatura primeira a se instalar na memória da criança, que, para mim possui todas as qualidades para a formação humana (MEIRELES, p.7).
            - É uma contribuição de todos e os ensinamentos que dele emanam perduram até hoje. – afirmei ainda que na voz da própria autora. – Mas como saber a receita de um bom livro infantil?
            - Ah! Tu, livro despretensioso, que, na sombra de uma prateleira, uma criança livremente descobriu pelo qual se encantou, e, sem figuras, sem extravagâncias, esqueceu as horas, os companheiros, a merenda... Tu, sim, és um livro infantil, e teu prestígio será, na verdade imortal. (MEIRELES, 4).
            - Uma receita, é que o autor seja como Górki nadava, longe de ser títeres... Que não tenha excesso de literatura, como procurei realizar nos projetos de Gulliver, Robinson... Ou seja, esse livro que a criança possa alcançar na estante e na mente, pois não é evitar temas que seriam considerados polêmicos como a morte, por exemplo, mas uma língua desliteraturalizada (p. 419). Mas isso não significa uma língua simplista. Afinal, as crianças e jovens sempre nos surpreendem.
            Nosso balão começou a descer.
            - Mas havemos de concordar em uma coisa, um livro de Literatura infantil é, antes de mais nada, uma obra literária. – Disse Cecília olhando-nos.
            - Concordo Cecília. – disse Lobato.
            - Minha professora diz que Literatura infantil é Literatura e ponto.
           
            Subitamente Cecília e Lobato voltaram a ser textos e a lona do balão caiu sobre mim.


¹ Este trabalho foi realizado para o encerramento do módulo de Crítica Literária do curso de pós-graduação em Literatura infantojuvenil da Universidade Federal Fluminense, ministrado pela Professora PhD Nilma Lacerda, cuja biografia segue: 

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Esperamos que tenham gostado.
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Bibliografia
MEIRELES, Cecilia. Problemas de Literatura Infantil.  2. Ed. – São Paulo: Sumus, 1979.

LOBATO, Monteiro. A barca de Gleyre – Quarenta anos de correspondência literária entre Monteiro Lobato e Godofredo Rangel. São Paulo: Companhia Editora Nacioal, 1944.

SEED – MEC. Debate: Temas polêmicos na literature. ISSN 1518-3157. Boletim 11, Junho de 2007.



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