A
VOLTA À LITERATURA INFANTOJUVENIL EM QUARENTA E CINCO DIAS:
COM
CECÍLIA E LOBATO¹
Tudo começa com o encerramento da
última aula da professora de Crítica Literária, Nilma Lacerda, a qual solicita
um trabalho em que, nós alunos, deveríamos estabelecer uma conversa entre
Monteiro Lobato e Cecília Meireles. Teríamos quarenta e cinco dias após o
término das aulas para escrever um bom trabalho. Preocupou-me o fato: como eu,
uma pessoa tão simples, poderia fazer Cecília e Lobato conversarem e, pior, estabelecer
essa conversa por escrito e descrevê-la?
Outro agravante fora o tempo... O
tempo sempre é um agravante. Este me devorou parte dos dias temperando-os com fel,
mas para essa entidade devia de estar muito bom aquele banquete. Com efeito,
acho que consegui a tempo, construir uma máquina para trazer os
dois grandes da Literatura Infantil conversassem comigo. A máquina assemelhava-se
a um balão. Isso mesmo, um baita de um balão. Assim, levei meus textos comigo e
eles se transfiguraram em um homem imponente de terno e sobrancelha relevante e
uma bela senhora de face delicada e olhos profundos que sorria manso. A
princípio, ambos não entenderam como foram colocados ao mesmo tempo no mesmo
tempo e, ainda por cima, num balão; lá nas alturas do céu. Acho que nós três
estávamos com medo dessa altura, mas o balão não era daqueles que voa baixo,
ele precisava subir para manter os literatos comigo e eu sabia que tínhamos
poucos dias.
Contei
à Cecília que eu era aluna de um curso de Especialização em Literatura Infantil e a
bondosa escritora iluminou-se em saber do grande avanço no estudo: Pensar que naquela época eram tão poucos os
estudiosos. Pensar que uma Biblioteca que levava meu próprio nome proibira a
leitura de muitos livros, como os de Mark Twain, por exemplo.
Também fascinado, Monteiro
Lobato, praticamente o precursor de uma Literatura genuinamente brasileira e
infantil, avermelhou-se em ver a grandiosidade de um projeto que fora sonhado
por tão poucos e levou tempos para chegar tão longe. Disse-lhes que tal projeto
precisava de mais sonhadores, disse-lhes que ainda existem as mesmas
dificuldades de outrora - as mesmas.
Pensando
nessas dificuldades, Cecília ressaltou
essa associação entre Literatura e Letras. A autora também indicou como a
Literatura precede o alfabeto (MEIRELES, p.2), ou seja, que povos primitivos
também possuíam uma chamada Literatura
oral que nos remeteria aos mitos, às lendas etc., que transmitidas de
geração em geração perpetuam-se e, muitas vezes, passam do domínio oral para o
escrito. Alguns, na época, indagavam essas afirmações, da mesma forma, que alguns,
ainda hoje, indagariam se existiria ou não uma Literatura Infantil.
Com
isso, a autora concluiu: Costuma-se classificar como Literatura Infantil o que se
escreve para as crianças. Seria mais acertado, talvez, assim classificar o que
eles leem com utilidade e prazer. Não haveria, pois, uma Literatura Infantil a priori, mas a posteriori. (MEIRELES, p. 2).
-
Estamos cá nós, discutindo literatura? – disse Monteiro Lobato erguendo os
braços como um maestro.
-
Espero que sim – disse eu – Pois se trata de um trabalho de Crítica Literária
em Literatura Infantojuvenil.
-
Fascinante! - Afirmou Cecília em tom
menos contido que o anterior. – Como eu afirmara em meu texto Problemas de Literatura Infantojuvenil,
uma sutil questão de estilo poderia caracterizar a chamada literatura para
crianças e jovens. Para muitos seriam livros simples, fáceis, ao alcance da
criança... (MEIRELES, p. 3).
-
Sim, Cecília! Quando você afirma ao
alcance refere-se ao que a criança pode alcançar intelectualmente, também?
Pois nunca duvidei que uma criança não pudesse alçar voos mais altos. Creio que
você também não.
-
Exatamente, Lobato, ou seja, essa questão do estilo corresponde ao conteúdo.
-
Recordo-me o texto, tal conteúdo condiz com o que o adulto julga interessante
para a criança. Sendo, assim, uma invenção
e intenção do adulto. – Afirmei num ar de boa aluna.
-
Assim, nessas condições, qualquer tema, de suficiente elevação moral, exposto
de forma singela pode-se transformar-se em um livro infantil. (MEIRELES, p.3) E
é a grande maioria. Camila, diga-me como é hoje?
-
Não mudou muito...
-
Não pode ser? – Disseram uníssono.
-
Verdade, o mercado ainda cria livros com essa espécie de fórmula e até os
próprios pais, que na realidade são o verdadeiro público, julgam o que é
interessante para criança e, por sua vez, o interessante é o “politicamente
correto”.
Agora,
falando dos educadores, eles próprios trazem a literatura para as salas de
aula, mas a transformam num coadjuvante pedagógico, distanciando a literatura
do processo estético que caracteriza a perplexidade do ser humano, e isso inclui
a criança, perante a vida, a morte etc.
-
Que interessante! Você já leu “A chave
do Tamanho”? – indagou Lobato.
-
Sim, lemos em classe e nossa professora Nilma Lacerda, que também escreveu um
texto interessantíssimo sobre a presença do mal em sua obra.
-
Que fascinante, conte-nos mais.
-
Não posso, pois não dá tempo. Faltam poucos dias para entregar essa conversa a ela. Quando estiverem com ela
vocês podem perguntar tudo o que quiserem diretamente. Mas essa questão do mal, de certa forma, tem
a ver com o que Cecília fala que deveríamos saber o que há de criança no
adulto, para poder comunicar-se a infância, e o que há de adulto, na criança,
pra poder aceitar o que os adultos lhe oferecem. (MEIRELES, p.3).
-
Posso falar-lhes – disse Lobato – Isso me lembra um episódio que vivi com um pingüim
e registrei numa carta ao meu amigo Rangel, datada em 15 de setembro de 1915.
Bom, Nas pedras de S. Vicente peguei um pingüim, de asinha machucada. E por
causa desse coitadinho tive de brigar no bonde... Havia um condutor português
que afirmava O regulamento purive
conduzir aves nos bondes. Eu quis discutir calmamente Ave tem penas, meu senhor, e onde estão as penas deste vivente?
Aleguei. Ele teimou que era ave... (LOBATO, p. 287)
-
Emília? É a própria Emília: Ave tem
penas, meu senhor... Isso é o que há de criança no senhor, Lobato?
Este,
por sua vez, calou-se olhando fixamente para mim e continuou, enquanto Cecília
ria-se da historia insólita de pingüins e bondes.
-
Bom, continuei o bate boca após o
português ter parado o bonde. Creio que aquele tenha sido o único pinguim a
andar de bonde.
-
Li algumas dessas cartas ao Godofredo Rangel. Há uma densa profundidade de
crítica literária nesses textos. Como, por exemplo, o senhor pede ao seu
interlocutor para podar as “camilices”, chamando alguns vocábulos de fósseis!
Disserta, enfim, sobre a escolha de palavras... Será por causa daquele
português que parou o bonde no tempo e não permitira a presença de um pingüim
quebrando as regra? – Disse em tom exageradamente empolgado.
-
Deixe você de camilices, Camila –
afirmou Lobato. – Vamos ouvir Cecília que só está rindo dessa conversa, “literária”.
-
Ah! Lobato. Bem que há um ponto que não discordamos em Literatura
Infantojuvenil, a permanência do tradicional... Enfim, desse manancial profundo
do qual bebem todos os povos. Que nos permite uma identidade de formação (MEIRELES,
p. 5). É essa literatura primeira a se instalar na memória da criança, que,
para mim possui todas as qualidades para a formação humana (MEIRELES, p.7).
- É
uma contribuição de todos e os ensinamentos que dele emanam perduram até hoje.
– afirmei ainda que na voz da própria
autora. – Mas como saber a receita de um bom livro infantil?
-
Ah! Tu, livro despretensioso, que, na sombra de uma prateleira, uma criança
livremente descobriu pelo qual se encantou, e, sem figuras, sem extravagâncias,
esqueceu as horas, os companheiros, a merenda... Tu, sim, és um livro infantil,
e teu prestígio será, na verdade imortal. (MEIRELES, 4).
-
Uma receita, é que o autor seja como Górki nadava, longe de ser títeres... Que
não tenha excesso de literatura, como procurei realizar nos projetos de Gulliver, Robinson... Ou seja, esse
livro que a criança possa alcançar na estante e na mente, pois não é evitar
temas que seriam considerados polêmicos como a morte, por exemplo, mas uma
língua desliteraturalizada (p. 419). Mas isso não significa uma língua
simplista. Afinal, as crianças e jovens sempre nos surpreendem.
Nosso
balão começou a descer.
-
Mas havemos de concordar em uma coisa, um livro de Literatura infantil é, antes
de mais nada, uma obra literária. – Disse Cecília olhando-nos.
-
Concordo Cecília. – disse Lobato.
- Minha
professora diz que Literatura infantil é Literatura e ponto.
Subitamente
Cecília e Lobato voltaram a ser textos e a lona do balão caiu sobre mim.
¹ Este trabalho foi realizado para o encerramento do módulo de Crítica Literária do curso de pós-graduação em Literatura infantojuvenil da Universidade Federal Fluminense, ministrado pela Professora PhD Nilma Lacerda, cuja biografia segue:
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Esperamos que tenham gostado.
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Bibliografia
MEIRELES,
Cecilia. Problemas de Literatura
Infantil. 2. Ed. – São Paulo: Sumus,
1979.
LOBATO,
Monteiro. A barca de Gleyre – Quarenta
anos de correspondência literária entre Monteiro Lobato e Godofredo Rangel.
São Paulo: Companhia Editora Nacioal, 1944.
SEED
– MEC. Debate: Temas polêmicos na
literature. ISSN 1518-3157. Boletim 11, Junho de 2007.
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